Davi e Heitor - Números e Perguntas


Acostumado com as calorosas discussões, o garçom secava um copo, olhava o relógio, escutava a conversa, momento sim momento não esboçava um quase sorriso e aumentava a atenção nos dois estranhos já conhecidos. Ali naquele bar, Heitor e Davi se encontravam, discutiam, brindavam a vida e abriam seus corações. Naquela noite, era Heitor quem mais falava:
- Do ponto da vida em que me encontro, percebo a relação entre os números e as perguntas. Não é uma relação plena e de fácil compreensão, mas uma singular e sutil relação.
- Você está louco. Não há sentido nisso. – E levemente coloca o copo entre os lábios, só para perceber que não há líquido nele. Rapidamente resolve esse problema.
- Talvez você esteja certo, mas essa relação é só minha. Seu significado simples não diz nada. Já o complexo significado que lhes dou revela meu mais profundo eu.
- Conjecturas de um bêbado. – Davi tentar trocar de assunto.
-É o signo deles que me encanta. – Ignora com extrema indiferença a fala do amigo e se deixa levar por seu raciocínio. - Os números são os representantes máximos daquilo que é vivido. Eles quantificam cada detalhe que vivo. Por exemplo: - 1.432 vezes que cantei em público; - 10.000 sorrisos que fiz brotar; - 72 bocas que entreguei meus beijos; - 5 mulheres que amei como um louco; - 200 malditos textos que escrevi num livro digital.
- Esses são números aleatórios. – Davi tenta ser ouvido e novamente ignorado.
- Tudo o que vivi. Tudo é número. Minha vida cifrada em números. Dados que se desvendados, calculados e revelados resultam em mim. Apenas em mim, nada mais. Os números são o bastião do passado. – Silencia a voz, mas os pensamentos ecoam alto em seus olhos. Calculando e decifrando a si mesmo. Pequeno silêncio. Vencido pela curiosidade, Davi quer saber mais sobre o pensamento de Heitor.
- E as perguntas? São o que? Possibilidades do que poderia ser vivido?
- Não meu amigo. São o completo oposto. As perguntas, dúvidas, questões, interrogações são o desconhecido, são o que virá, são o efêmero da vida, são o futuro, são sombras dançando diante dos olhos. – Heitor olha para Davi para ver o efeito que suas palavras têm no amigo. Com uma expressão séria ou a mais séria que sua embriagues permite, pensa no que Heitor disse. Um pouco confuso olha para o companheiro. Antes que pudesse falar alguma coisa é sobrepujado pela voz Heitor.
- Na certa, você me perguntará se não há números no futuro. Não, não há. Só projeções e possibilidades de números. Pois esse é o futuro. É pergunta, é dúvida. Vários caminhos que por várias possibilidades pode se transformar. É o que queremos que aconteça, mas o que acontece nem sempre é o que se espera. São contornos suaves de um desenho, que só será preenchido conforme vivido para depois ser quantificado em números. Um ciclo eterno. Essa é a minha relação.
Pausa. Reflexão. Silêncio. Ou tanto silêncio quanto é possível num bar as 03h da manhã ocupado por dois homens e um garçom. Os dois homens parecem mergulhar em seus pensamentos. Quem sabe só estejam bêbados demais pensando no nada. Mas o que ocorre é um instante de silêncio. Quem quebra esse silêncio é som de um quebrar de copo seguido por um “Que bosta!” do Garçom. Davi trás sua consciência para o presente e fala:
- É uma forma de enxergar as coisas.
- Acho que só consigo ver a vida assim. Nós somos números e perguntas. Fatos e projeções. Certezas e indecisões. Somos formados por um passado quantificável e por um futuro de possibilidades incertas. 

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