Na mesa de bar entre alegrias,
tristezas, saudades e vontades, Davi olha para o fundo vazio de seu copo e
soltas as frases que lhe surgem na mente.
- Ah, meu amigo Heitor. Sei que você
tem tantas formas de lembrar dos outros, mas garanto que nenhum dos seus
métodos é tão preciso quanto o meu, quanto a forma com que recordo das
mulheres.
Uma risada franca e direta é a
resposta de Heitor. Assim como em tudo o que faz. Heitor é sincero, firme e
generoso, por isso responde com uma pequena indagação.
- Então está me dizendo que sua
memória é diferente da minha? Está me dizendo que sou duvidoso em minhas
lembranças?
- Nada disso. – responde
rapidamente Davi – Digo que não outra forma de definir as mulheres se não pela música.
- Cada uma é enquadrada em uma
música com letra e melodia? – Heitor ainda procura entender o amigo – Me parece
estar sendo presunçoso ou até mesmo ingênuo ao definir a complexidade de alguém
a apenas uma música.
- E quem disse que é apenas uma
para cada? As mulheres são tão intensas e tão volúveis que em uma música não
cabe sua grandiosidade e minúcias. Mas que elas são definidas por música isso
são.
- Tudo bem, tudo bem. Então
explica esse teu devaneio de bar.
- Não é devaneio, é o que
acontece comigo. Há certas mulheres que vem acompanhadas de mistério, de vida,
de paixões, de timidez e tudo isso é música. Por exemplo, conheci Joana na
minha juventude e como era bela em toda a sua revolta. Sempre que passava por
mim, sempre que me olhava, eu ouvia uma banda de rock tocando ao fundo. A
profundidade de seu olhar era composta de batidas fortes de uma bateria. Sua
timidez expressa no simples refrão de certa
música: “Leia em meus olhos apenas”.
- Pois é como digo, você a
reduziu a uma música.
- Não, não! Esse é apenas o
refrão de toda a sua história. Seus olhos eram febris, seus passos inconstantes
como tantas outras músicas do mesmo artista. Ela era perfeita em seu estado de
eterna juventude, com erros que ainda iria cometer e lembro com eu a deixei
escapar por entre as mãos.
Outra risada de Heitor corta o
ar.
– Começo a entender o que você fala. Se baseou apenas nessa jovem para elaborar teu
pensamento? Ou houveram outras músicas em forma de mulher?
- Não, Joana não foi a única...
Houve outras que não me aterei muito, como Alice que era do mesmo estilo que
Joana, mas composta de um choque entre malícia e ingenuidade verdadeira. Houve
Manuela que de tão platônico o meu amor se transformou numa balada distante, na
qual eu a vejo, mas não sei distinguir seus detalhes. E também houve Eulália e
foi quem mais amei, quem mais me amou e quem mais quero bem. Eulália que era
suave, forte, intensa e sonhadora. Hoje eu sei, que ela nasceu para mais, para
levar sua música a todos os lugares. Sabe, ela foi feita pra sonhar, feita pra
voar mais longe do que qualquer uma. Por isso eu a amei, por ter pousado do meu
lado, me amado, me mudado e mesmo sem querer voar, voou... Juntos chegamos no
jardim do éden e descobrimos a felicidade guiados ao som de um MPB doce,
poético e feito por duas vozes, assim como nossa relação.
- Então você amou Eulália por ter
voado?
- Não, meu caro amigo. Foi por
ter me dado a oportunidade de cantar ao seu lado enquanto estava comigo. Por
ter dividido sua voz suave comigo. Por ter ficado o tempo necessário, mas não
ter deixado os seus sonhos.
- Bonito. Justo. Então é assim
que lembra delas?
- Sim, e não vejo outra foram de
lembrar. Dessa forma consigo senti-las comigo cada vez que ouço ou canto uma
música do repertório que as define. As amo profundamente, de novo e de novo. É
tão particular e tão preciso que sinto os detalhes que vivemos tão próximos.
- Mas agora me diga. E dos
homens? Como você se lembra de seus amigos?
- Com o coração, com a cabeça.
Mas sem música. Sem o encanto que elas
tem. Ainda assim lembro dos amigos.
- Então nós, os homens, não somos
definidos por música.
- Nós? Nós não merecemos isso.
Não merecemos a graça de ser explicados ou ser definidos ou ainda ser
relacionados a algo que foge da nossa completa compreensão. Isso é apenas para
elas, seres que dão vida ao solo deserto e sem imaginação que chamamos de vida.
Linda a forma como ele entendeu Eulália, linda a forma como ele grava as mulheres...
ResponderExcluir"E quem disse que é apenas uma para cada? As mulheres são tão intensas e tão volúveis que em uma música não cabe sua grandiosidade e minúcias."
Bom demais.