A Menina do Pôr-do-sol


Ainda acredito nos mistérios da vida.

Estava eu acompanhando uma amiga numa caminhada, mas naquele exato momento eu apenas aguardava ela voltar das compras. O cenário era simples: a entrada deu um mercado de uma cidadezinha do interior. A iluminação era perfeita: um entardecer com um céu repleto de nuvens negras de chuva, mas o céu ainda se mostrava com o azul do infinito-além-nuvens deixando a terra ser banhada pelo dourado do sol. A umidade do ar dava cores intensas para os mesmos detalhes ignorados todos os dias. O figurino não tinha nada de especial: roupas cotidianas para personagens cotidianos que permeiam este relato. Os personagens aos poucos se deslocam para seus lugares marcados e... Pronto! O espetáculo começa.

Um mendigo sentou alguns metros de mim e começou a falar sozinho. Olhou para o céu e foi soltando frases quase inaudíveis, que pareciam sussurros. Sem prestar muita atenção no que ele dizia, me ajeitei no chão e voltei minha atenção para o céu admirando aquela linda pintura celeste e me perguntando “quantas pessoas estavam tendo a oportunidade de observar este céu maravilhoso e desperdiçam a chance olhando para qualquer coisa sem importância como a calçada ou seus pés...”. 

Em um impulso quase cósmico procurei quem mais estaria observando o céu além de mim e meu amigo maltrapilho. Para minha imensa surpresa vi alguém na janela, a figura estava longe, parecia uma menina ou talvez eu apenas quisesse que fosse uma menina. Ela olhava para o horizonte, para o lugar onde o sol se põe, para longe da movimentação daquele mercado, para um lugar distante da realidade. Ela parecia sorrir. Ela parecia falar. Eu parecia ouvir o que ela queria me dizer. E então ela me disse com uma voz suave e angelical “O sol tem a nobreza de banhar todos os homens com sua luz dourada. A chuva tem a bondade de limpar os sujos e os limpos, os certos e os errados. E os homens ainda ignoram tudo aquilo que é simples demais por pensarem ser tolo demais...”. Suavemente ela voltou seu olhar para mim sem mexer um músculo do corpo. Como eu sabia que me olhava? Eu senti seus olhos me desnudando por completo. Passaram segundos de um silêncio interminável. Seu olhar me dizia tanto que parecia nem ser real, parecia nem ser humana, parecia ser algo que não consigo definir... Ela desviou o olhar e voltou observar aquele horizonte, aquela beleza, aquele momento. Ela voltou a ser imóvel. 

Acordei daquele sonho irreal e ela continuava lá, observando o horizonte. Perguntei-me então por que olhava para a paisagem sem nada fazer? Por que me disse palavras tão estranhas? Por que estava assim? Comecei a tecer as mais diversas explicações. Talvez tenha perdido um parente inesperadamente. Talvez tenha traído o namorado e aquilo era o remorso. Talvez esteja solitária há anos por não ser compreendida. Talvez admire a calmaria do pôr-do-sol. Talvez... Não consegui mais confabular comigo mesmo, pois naquele momento minha amiga voltava e teríamos que partir para outra cena em outro cenário. 

Olhei para o mendigo que ainda praguejava contra o mundo, mas já não olhava o céu. Quando cruzei meu olhar com o dele, me olhou profundamente, tal qual a jovem admiradora do pôr-do-sol e soltou uma gargalhava genuinamente feliz. Parecia entender algo que eu não sabia o que era. Ele ria sozinho e se afastava de mim. Agora de pé antes da partida, olhei a menina uma ultima vez e ela continuava parada no seu silêncio eterno. Sua imagem era clara, eu podia ver nitidamente o porquê ela não parava de olhar o horizonte. A jovem, ou o que eu pensava que era uma jovem, se tornou objetos em uma mesa perto da uma janela. A risada do mendigo me invadiu o espírito, a gargalhada dele se tornou a minha e voltei a seguir caminho como minha amiga. Fui para longe daquele lugar, mas algo dele levei comigo. 

Possivelmente você deve estar pensando que o que eu vi foi só uma ilusão, que as palavras que eu ouvi tenha sido proferidas pelo mendigo, que aquele olhar nunca tenha existido. Engano seu. Tudo o que relatei estava mais vivo do que nunca em mim e jamais deixarei morrer aquele momento sublime. Por mais estúpido que tenha sido o meu engano, ainda lembro daquelas palavras, ainda lembro daquele olhar, ainda lembro daquele silêncio, ainda lembro daquela gargalhada, ainda lembro do que vivi aquele dia, ainda lembro daquela ilusão que me era por demais real.

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