Criação


Após o intenso trabalho para criar e moldar o universo, Deus decide implantar, em um humilde corpo celeste de um pequeno sistema solar, algumas idéias que lhe ocorreram enquanto trabalhava. Neste pequeno bloco de pedra sem vida, começa a gerar o que hoje conhecemos como natureza. A beleza é tamanha que Deus chama seus ajudantes para que apreciem sua obra. Maravilhados os anjos exclamam glórias ao Moldador Universal. “Quão sábio, quão magnífico és nosso Senhor. Fizeste tua mais perfeita obra.” Deus sorri e nega dizendo que ainda tinha idéias melhores e mais harmônicas.


Agora com uma platéia de anjos, Deus começa criar pássaros, peixes, felinos e tantas outras formas de vida quanto sua fértil mente suprema é capaz de imaginar. Foram tantas e tão variadas que os anjos não conseguiram acompanhar o desenrolar daquela explosão de vida e mesmo assim Deus não utilizou todas as formas que sua capacidade de cognição divina criara, usou só as melhores e as conectou em uma intrincada rede alimentar e social, onde aquele corpo celeste poderia viver milhões e milhões de anos sem que a vida se extinguisse.


Os anjos não conseguindo conter suas vozes, fazem coros de aleluia que ecoam por toda a criação. Cantos de gratidão, louvor, amor e admiração a Deus. Este aprecia o gesto, mas sua razão divina não parou um instante de trabalhar. Sentia em sua película cósmica que tudo que havia sido criado era perfeito. Sentia que se de alguma maneira fosse haver evolução, ela seria plena naquele ponto da criação. Os anjos percebiam isso e viram que nada poderia ser adicionada a esse cenário sem causar um desequilíbrio. Tocaram as trombetas celestiais e Gabriel o anjo de voz mais doce e poderosa silenciou os demais para então glorificar o senhor, mas nada foi capaz de tirar o Altíssimo de sua compenetrada concentração. Gabriel acabou seu canto, os demais pararam de louvar e tudo mergulhou em um silêncio. Eles sabiam que era hora de esperar. Estático por um tempo indeterminado, pois ainda não se contavam os dias, nem se marcava nada. Sua mão pegou o barro daquele corpo celeste e começou a moldar. Os anjos observavam com muita curiosidade cada movimento do Artesão do universo.


E por fim o barro havia ganhado uma forma, que era frágil, feia e complexa. O Altíssimo parou seu trabalho e observou por um longo tempo ainda. Os anjos ansiosos aguardavam que Ele acabasse o trabalho, que desse o toque divino e então aquela criatura se encaixasse perfeitamente ao resto da criação. Os anjos então começaram um burburinho, afinal estavam ansiosos. Aquela parecia ser a ultima criação do Moldador universal, logo deveria ser a mais perfeita. Gabriel fez soar novamente sua voz, agia como representante, agia com a mais pura inocência e com a mais delicada curiosidade. Perguntou então:


- Oh, Lorde de tudo que existe! Dizes para estas humildes extensões de seus poderes, o que és este ser que acaba de criar, ainda não fizeste ele se mesclar com o resto de Tua criação, ele ainda é estranho, ele ainda é imperfeito.


Deus virou seu olhar onipotente em direção de seus primeiros ajudantes. Nada diz, apenas sorri. Silêncio. Então sorrindo, Ele deixa a criatura ali parada no meio da relva naquele corpo celeste, assume uma forma parecida com a daquela criação, assumiu a mesma estatura e coloca a mão na face e lhe abençoa. Beija-lhe o rosto e lhe sopra pelas narinas e com aquele sopro se desfaz em milhões de moléculas e sobe aos céus seguindo rumo ao resto do universo, os anjos entendem que é hora de se retirar e seguem o Magnânimo Criador. Assim como em todo o resto, alguns anjos ficam e observam aquele mundo.


Algum tempo depois, entenda tempo por eras, Gabriel vai à presença do Supremo e caí em pranto aos seus pés. Chora desesperadamente, um choro puro, inocente e suave. O Senhor lhe olha com um meio sorriso. Quase prevendo as próximas palavras. Talvez previsse mesmo.


- Amo de todos os Amos. Senhor da sabedoria primordial. Diz a este desesperado ser, por que criaste o homem? Aquela criação destrói, aquela criação mata, tira a vida não para alimentar seu corpo, mas para alimentar seu ego, sua mesquinhez. Tua ultima criação é a mais imperfeita. Procura vantagens sobre seus semelhantes, assassina sem grande motivo os seus irmãos, as suas mulheres, o seu mundo. Ele caminha rumo à desgraça. Tem em seus olhos a imperfeição de tudo. Por que o criaste?


Gabriel olha o seu Senhor de frente. E Ele com a voz poderosa como a explosões solares e ao mesmo tempo serena como a quietude do universo responde ao questionamento de sua cria celeste.


- Dentro da imperfeição deles existe a mais pura das perfeições. Seu claro deslocamento do mundo é sublime. Este ser não foi criado como parte comum do mundo, ele sofrerá, ele terá um caminho árduo, até conseguir sua paz, conseguir se ajustar ao todo. Cada ser humano a sua maneira. As diferenças os farão ter caminhos diferentes e nenhum será mais ou menos perfeito por isso. Na sua busca por perfeição encontrará dificuldades tamanhas que sofrerá e por muitas vezes morrerá sem entender o porquê de ter nascido, o porquê de existir. Mas tudo que é imperfeito pode crescer, pode evoluir. Tudo que evoluir é perfeito por ter essa capacidade. Ai está a minha benção. Mas está evolução não ocorrerá sempre, ter a capacidade não diz que acontecerá, e isto os torna estranhos para si mesmos e para aqueles que os cercam. E está é minha maldição. Cada ser humano não é o fim, o perfeito. Eles são o início, o imperfeito. Eles são o caminho. Aquiete seus sentimentos minha cria angelical. Agora descanse e reflita.


Gabriel ainda absorvido em pensamentos deixa o Sabedor de todas as Ciências e ruma a um lugar de meditação. Aquele que tudo sabe, olha os humanos e sorri. Vê neles seu maior trabalho e sua maior glória. Sabe que eles com suas imperfeições são perfeitos. Dá mesma maneira que sabe que Ele com sua perfeição é estagnação, é o mesmo, é o eterno e assim alguém alguma dia perceberá que ele é imperfeito dentro de sua perfeição.

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